“Fortaleza, dádiva do Pajeú” é o título do artigo publicado no jornal o Otimista na última quarta-feira (27/8), assinado pelo diretor da Fundação Sintaf, Luiz Carlos Diógenes. Confira:
“Fortaleza, dádiva do Pajeú”
Fortaleza, de vila à metrópole, já lá se vão 300 anos em 2026. Obra humana, cultura amassada pela pisada antropocêntrica. Encostou-se, originariamente, ao Riacho Pajeú. Presença da Natureza de expressão ecocêntrica, não lhe sonegou a água e o pão, o colo afetivo e a paisagem extasiante. Tal qual Egito, dádiva do Nilo, nos termos do historiador antigo, Fortaleza é dádiva do Pajeú. Todavia, como o escorpião peçonhento, da fábula, que crava suas garras nas costas do sapo que que lhe socorre da inundação, Fortaleza destila seu veneno devastador sobre o riacho que lhe deu vida.
Discussões bizantinas, afeitas ao academicismo positivista e colonialista, disputam a quem Fortaleza deve sua fundação, se a Pero, Martim ou Matias. Do autóctone habitante não se fala. Silenciado e há muito apagado da paisagem, não lhe interessava esta glória. Vivia em gratidão à Natureza que lhe emprestava os meios da sobrevivência e as condições de também fazer cultura. Convivia com o Pajeú, também sujeito ecológico de direitos. A cultura antieco lógica, naturalizada e consolidada na cabeça presunçosa de um escorpião civilizado, não só o ignora. Tenta exterminá-lo!
Iracema, personagem da literatura, melhor serviria como protótipo humano para fundação de Fortaleza. Cidadã originária, ao conceber do aventureiro europeu, colonialista, um rebento de projeto civilizacional, misturando cultura ocidental e paraíso tropical, abre uma janela para o mito fundador. Iracema, incrustrada na paisagem fortalezense, eternizou-se. Quanto ao Pajeú, na condição de cadáver que não se deixa sepultar, segue fora do mapeamento cultural da cidade, em avançado processo fático de apagamento da sua memória e da sua existência. Redivivo, contudo, o Pajeú emerge dos planos que a Natureza cogita. Duas vertentes, mais ecológicas e poéticas, abertas à crítica fundacional de Fortaleza. Pelo caminho do Pajeú, organismo físico ecossistêmico, Fortaleza foi sua dádiva. Pelo símbolo Iracema, belo espírito mítico, Fortaleza continua seu mimo. Pajeú e Iracema, corpo e alma, Natureza e Cultura se fundem na história identitária da cidade.
Luiz Carlos Diógenes é diretor de Cidadania, Inclusão Social e Cultura da Fundação Sintaf, pesquisador e escritor.
Fonte: O Otimista.
https://www.ootimista.com.br/